Nascimento de Maria
“Alegra-te, filha de Sião” (Sof 3, 14)
Entre as muitas cenas que ilustram a verdade da Imaculada Conceição, a quem é dedicada a igreja paroquial, é escolhida a do nascimento para este programa iconográfico. Um espaço interior serve de fundo à figura de Santa Ana deitada. Descansa após o parto, rodeada de servas, que cuidam da Menina, colocada em primeiro plano.
Por volta do ano 18-20 a.C., quase certamente em Nazaré (ou Bezatha), nasceu por dom de Deus, a cheia de graça, situada na história, na expectativa messiânica do povo de Israel. Os porta-vozes de Deus, os profetas, inspirados pelo Espírito Santo, traçam linhas da sua imagem, a partir de diversos ângulos. Maria assume particular importância como ponto de convergência das promessas de Deus, como concretização de toda a humanidade. Será a representante de uma história aberta ao mistério divino. Em Maria se manifesta o desejo de Deus salvar o ser humano. Ela mostra-se apta a servir o projecto de Deus. O mal não destrói as raízes da imagem de Deus desde a criação.
Há textos que por acomodação, símbolos e figuras, a Igreja viu como referidos a Maria. Entre os textos do Antigo Testamento que o II Concílio do Vaticano assinala como claramente referidos a Maria contam-se: Génesis (3,15), referente a Maria como Nova Eva; Isaías (7,14), ao prometer a vinda do Messias, nascido de uma virgem; e Miqueias (5,2-6), ao lançar a visão do menino nascido em Belém.
Os evangelhos nada informam sobre o nascimento de Maria e sobre quem foram os seus pais. Foram tradições e lendas a contar-nos os pormenores da vida de S. Joaquim e Santa Ana. Não sabemos como era a fisionomia da Mãe de Jesus, mas certamente com aspecto doce e bondoso, humilde e recolhida, alegre e disponível.
Característica essencial do nascimento de Maria (que parece significar Senhora) é que aquela menina nasceu “cheia de graça”.
O pecado não a atingiu, desde o primeiro instante foi imaculada.
Essa maravilha só pode acontecer graças ao amor de Deus e como antecipação da redenção operada por Jesus. Com Cristo Jesus, o pecado pode ser vencido e tornar-se extravio do projecto revelado.
Maria foi preparada pelo Pai para digna mãe de Jesus. Em Maria, Deus recriou a perfeição humana, a plenitude da graça. Maria, a primeira salva por Cristo, vai à frente, como Imaculada, no caminho para Deus. No nascimento da Imaculada começa a manifestação pascal da salvação. A singular associação de Maria ao Filho Jesus mostra, de modo total, como é o ser humano sonhado por Deus.
O nascimento acontece na fragilidade humana, mas, em qualquer ser humano, há uma réstia de esperança na santidade.
A transparência à grandeza de Deus e a vivência fiel pela força do Espírito, fazem da Mãe de Jesus a grande colaboradora no projecto divino. Maria é, como afirmou Von Balthasar, o lugar da superabundante fecundidade de Deus, preparada para acolher Cristo que domina a condição pecadora da humanidade, existente ao nascer.
Ao vir à luz, Maria entra num caminho que não será fácil.
Apresentação de Maria no templo
“Meu espírito exulta em Deus, meu Salvador” (Lc 1, 47)
O tema da apresentação de Maria no templo [ainda hoje se celebra a 21 de Novembro) é tomado dos evangelhos apócrifos (Proto-evangelho de S. Tiago: cap. VII e VIII; Evangelho de Pseudo
Mateus: cap. IV) e popularizado, na Idade Média, pela Legenda Áurea.
Segundo esses escritos, Joaquim e Ana apresentam Maria no templo, quando tinha três anos. Para chegar ao altar dos holocaustos, no exterior do santuário, era necessário subir quinze degraus, correspondentes aos quinze salmos graduais (120-134), cantados pelo povo quando ia em peregrinação a Jerusalém. Sem olhar para trás, Maria subiu sozinha. Assim se manifestava que ela assumia por si a oferta ao Senhor. Apesar de ser Imaculada, cheia de graça e virtudes, Maria aparecia ao mundo, à sociedade do seu tempo, como uma mulher que cumpria a vontade de Deus. A espiritualidade da época moderna, insistiria na dimensão de consagração de Maria, falando mesmo de “sacerdócio da Virgem”(Jean Jacques Olier).
Pelo grupo social a que pertencia, Maria era aparentada com uma família sacerdotal (Le 1, 36). Tinha a honorabilidade bastante para ser noiva de José, da descendência de David (Mt 1, 20). Ainda que decadente, a casa de David conservava prestígio, graças à promessa messiânica.
Maria sentia a presença de Deus dentro dela, como algo maior do que ela própria. Entregar-se a Deus na totalidade do seu ser era entrar numa vida sem margens, disposta ao que a transcendia. Parecia-lhe que aquela entrega era só um passo realizado pela misericórdia imensa e impaciente de Deus, firme na ânsia de salvar a humanidade.
Após Abraão, Moisés, Elias e tantos crentes, Maria abriu-se ao acolhimento de Deus. A sua singularidade consiste em não ficar limitada às tradições, às primeiras expectativas, mas em ser livre para responder ao querer de Deus. Esta disponibilidade teria consequências bem radicais, mas estava sintonizada com o projeto de Deus. Maria optará por uma confiança em Deus como centro da sua vida, seu único apoio. Ser pobre do Senhor era inserir-se numa corrente espiritual. Em vez de se servir de Deus ou andar à procura de meios para resolver problemas, o seu coração pobre serve a Deus, aberto à esperança.
Outras épocas concederam espaço a cenas da educação de Maria no templo ou de Santa Ana a ensinar a pequena Maria a ler. Mais conforme à realidade histórica, corresponderia Maria educada nos ofícios caseiros e a aprender com seu pai a ler e a escrever, na sua casa simples e humilde.
Anunciação
O primeiro plano desta representação vai para o Espírito Santo que, sob a forma de pomba, desce sobre Maria para que floresça o Salvador. Pela primeira vez aparece assim, no Arco Triunfal de Santa Maria Maior. O arcanjo Gabriel levanta a mão direita em gesto de falar e Maria acolhe, ajoelhada, a proposta de Deus. Diante da figura angélica inscreve-se a saudação: “Ave Maria, gratia plena”. No chão, além do livro da Palavra aberto, como se Maria estivesse a meditar as predições de Isaías, no dizer dos Padres da Igreja, vê-se uma jarra com um lírio composto por três flores, uma já aberta e as outras em botão, símbolo da virgindade de Maria, antes, durante e depois do parto.
A narração lucana segue o esquema das anunciações dos nascimentos gloriosos, já conhecidas no Antigo Testamento, e também presentes em S. Lucas, com a anunciação a Zacarias (1,5s5), e em são Mateus, com a anunciação a José (Mt 1,18-25). Segue o modelo: aparição do anjo, reação de temor da pessoa escolhida, mensagem central (“conceberás um Filho e chamar-lhe-ás Jesus”), a objeção (“como é possível?”) e, finalmente, o sinal (a conceção de Isabel). No centro da composição está Cristo, o Jesus, que quer dizer Salvador. Será grande e Rei eterno, portanto herdeiro da promessa a David (2Sam 7, 9.13.14.16).
Em Maria, Lucas vislumbra uma nova e perfeita tipologia da Arca da Aliança e da filha de Sião. Como a nuvem cobria o povo eleito na caminhada do deserto e repousava sobre a Arca da Aliança, qual sinal misterioso de Deus, como o Espírito Santo pairava sobre as águas caóticas da criação, assim a sombra e o Espírito do Altíssimo envolvem e penetram o tabernáculo da Nova aliança que é o seio de Maria. Por isso: “alegra-te, filha de Sião (Sof 3,14-17).
No seio da filha de Sião atua, plenamente, a presença de Deus com o seu povo, aí estabelece o seu templo para entrar em comunhão com a humanidade. Surge Maria, plenificada pela graça, para acolher o Filho de Deus e alegrar-se pela manifestação do amor de Deus.
Tremeu a jovem, que teria entre 12 a 15 anos, ao sentir a proposta de ser seio do Filho do Altíssimo. Maria escutou aterrada e entusiasta, situada entre terra e céu, a mensagem divina. Gravou as palavras do diálogo interior e cumpriu a resposta nascida no silêncio: “Eis a escrava do Senhor”. A resposta de Maria a este dom é autodefinir-se “Serva do Senhor”, como Abraão, Moisés, Josué, David, os profetas. Maria é a mãe do inteiramente “servo do Senhor”, o Messias.
Visitação
“Feliz a que acreditou”
Como o mensageiro disse que Isabel esperava um filho, Maria vai ao encontro de quem aceitou entrar em idêntica aventura. Desde que Maria conheceu o projeto de Deus quis correr a anunciá-lo a Ain Karim, onde viviam Zacarias e a sua prima, também beneficiada pela força maravilhosa de Deus. Maria correu em busca de comunhão, com o pequeno filho dentro do seu seio, o bendito fruto das suas entranhas, obra de Deus a crescer. Do encontro das duas grávidas, dois ventres acolhedores do mistério, salienta-se o abraço, porque seria difícil representar as palavras loucas de alegria que brotam das suas bocas. Isabel proclama a profecia: o nome de Maria seria bendito por todas as gerações. E Maria cantaria os feitos de Deus com os pobres e humildes, proclamaria a revolução do Reino. O vitral assinala a presença de Zacarias ao fundo e de S. José em primeiro plano. A ausência normal deste último relaciona-se com a estranheza que sente quando descobre que Maria tem, já, o ventre dilatado pela gravidez, mas também não seria habitual que Maria viajasse só. Neste quadro, quer o mudo sacerdote, quer o pensativo José, permanecem fora da intimidade partilhada entre Maria e Isabel.
De facto, apesar de ser uma cena carregada de humanidade, aqui não se sublinha a atitude serviçal de Maria, solicita na ajuda a sua prima, mas o fundamental é descobrir a primeira ação salvífica do Messias. Maria vê-se associada a Cristo na obra da redenção. Isabel está feliz porque por três meses, tem junto de si a arca da Nova Aliança, a sede da presença de Deus no meio da humanidade. Confessa a fé e louva, ao interpretar o acontecimento de Maria, a dignidade de Mãe do Verbo como bênção.
Isabel exalta admirada a ação divina na criatura e apresenta-a como exemplo, no seguimento de outras figuras como Judite (13,18) ou Débora (Juízes 5,24). Maria é a crente feliz que acolhe o dom de Deus na alegria. Deus cumpre o seu programa com a fé de Maria.
Esta coloca-se na linha das grandes obras de salvação de Deus e retomando o cântico de Ana (1Sam.2,1ss), a mãe do Samuel, cuja esterilidade foi transformada em maternidade, responde com o Magnificat, evoca grandes “inversões”. Deus libertou o seu povo, despojou o rico e depôs os poderosos, porque confiar no poder e nos bens engana o ser humano. A vida pede outra qualidade que não a mera satisfação imediata. O ser humano é feito para o dom de si, para a partilha, para a confiança.
Maria exalta o triunfo de Deus, não através da potência das manobras políticas, a prepotência militar e o potentado económico, mas através dos simples, dos pobres, dos esquecidos, dos débeis, dos postos de lado. Contraria a história humana, que favorece o sucesso, a força, a riqueza. No Cântico, nascido de uma mulher orante, que alimenta a sua oração de expressões bíblicas, expressa-se a felicidade do crente que exulta de alegria. Maria transforma-se em louvor pela admiração contemplativa e grita no Magnificat a esperança na ação de Deus forte, santo e misericordioso.
Natividade
“Quando chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de mulher” (Gal 4,4)
Cumpriram-se os curtos e intensos nove meses até chegar a hora de nascer o Menino Deus. Maria vai a Belém com José para cumprir um édito do Imperador César Augusto. Lucas preocupa-se em fixar o nascimento de Jesus na história e na geografia. A maternidade de Maria tem uma coordenada oferecida pelo espaço da promessa feita a David, pois Belém é a cidade de David, e por uma coordenada de tempo: reinava o Imperador Octaviano Augusto (31 a. C.-14 d.C.), o que sublinha a encarnação no centro da história. No entanto, mostra a intervenção do alto no chamamento dos pastores para que saúdem o Messias.
Em ambiente noturno assinalado pelas estrelas, neste vitral tudo se centra no Menino que abre as mãos para o Pai celeste, em Maria silenciosa a erguer as mãos em oração e José com a mão no queixo, em gesto de meditação sobre o que presenciava. José, filho de David, aceitou o convite do mensageiro de Deus para não temer tomar consigo Maria sua esposa, porque o que nela foi gerado vem do Espírito Santo (Mt.1,20). Esta anunciação vai alterar o seu futuro de jovem enamorado e ultrapassar a sua crise de consciência. “Maria envolveu o Menino em faixas e depô-lo numa manjedoura”. Aqui nasce o Salvador do mundo, “grande alegria para todo o povo® (v.10-11). Neste ambiente de uma gruta, rodeado de pastores semi-nómadas, com residência provisória e construções reduzidas ao mínimo. Cristo vem ao mundo no seio de um povo oprimido, no meio dos pobres desprezados pelos poderosos. Mas o Filho de Maria será o centro do tempo.
O grande acontecimento da história ocorre sem alaridos, numa moldura com elementos contrastantes: extrema pobreza de um casebre e manjedoura, já que não havia lugar para o Senhor do Universo, aliada a um eco cósmico, evidente nas estrelas, a testemunhar a beleza luminosa daquela noite. Estão presentes os animais, o boi e o burro, não mencionados nos evangelhos, mas introduzidos na arte desde o século IV e já aludidos pelo escritor do século III, Orígenes, como símbolos da Humanidade toda: a Lei judaica (boi) e a idolatria pagã (burro). O espírito franciscano concederia aos animais participar na adoração cósmica do Verbo que se fez carne.
Interiormente, Maria não perde nada do que observa e do que sente. Dá graças e adora, com encanto, as delicadezas do Altíssimo.
Purificação de Maria e apresentação de Jesus no templo
“Felizes os olhos que vêem o que vós vedes” (Lc 10, 23)
“Uma espada trespassará a tua alma” (Lc 2, 35)
Aos quarenta dias do nascimento, Maria e José foram apresentar Jesus ao Templo de Jerusalém. Maria procedeu à sua purificação, como ordena a lei de Moisés. Parece inútil. Como apresentar Deus a Deus e para quê purificar-se quem era imaculada?
Maria e José obedecem às normas legais e rituais. A puríssima Mãe do Senhor submete-se às prescrições da Lei. De facto, durante os quarenta dias seguintes ao parto, a mãe estava afastada do templo porque impura. Ao quadragésimo dia devia deslocar-se ao templo e, no átrio das mulheres, diante da Porta de Nicanor, ser declarada pura pelo sacerdote. Para a cerimônia era imposto um sacrifício de um cordeiro e de uma pomba. Os pobres poderiam recorrer ao sacrifício de apenas um par de rolas ou duas pombas, como acontece neste caso.
Contemporaneamente acontecia o resgate do primogénito, dado que era considerado como pertencente a Deus. O Menino é oferecido ao verdadeiro Pai celeste a quem, desde sempre, pertence. O Espírito está ativo nos dois justos que acolhem o Menino, Simeão e Ana, movendo-os ao templo. O Espírito Santo movia os pobres do Senhor (anawim) e estava na sua atitude e na sua palavra profética.
O velho Simeão, como homem de confiante esperança, justo e temente a Deus, toma o Menino nos braços, feliz por receber a grande surpresa, antes de morrer: ver o Messias. Ana, a fiel orante, que no vitral não aparece, exprime a sua alegria. Maria e José estão pasmados ao ser testemunhas deste mistério glorioso.
O cântico do velho Simeão, Nunc dimittis, desde o século V, é adotado como oração das completas, ao terminar o dia. Trata-se de um hino de abandono sereno e confiante a Deus e uma saudação festiva à Palavra de Deus que em Cristo é salvação universal, luz que ilumina todas as gentes. Neste canto, Simeão profere dois oráculos: Cristo será sinal de contradição e uma espada de dor trespassará o coração de Maria.
Esta expressão, modelada pela consideração da Palavra de Deus como espada, presente no livro de Ezequiel (14), deu origem a uma tipologia iconográfica mariana. No século XI, passa-se das cinco chagas do Crucificado às cinco dores. Por razões de plenitude simbólica, as dores de Maria passarão a sete (profecia de Simeão, fuga para o Egipto, procura de Jesus no templo, caminho do Calvário, crucifixão, deposição da cruz e sepultura). No século XVI-XVII aparecem as figurações de Maria, como Senhora das Dores, com sete espadas cravadas no peito.
Esta previsão de sofrimento chegará mais depressa do que Maria podia contar: a cólera de Herodes provoca desolação, medo e, só no fim, reposta a paz, o Menino regressará a Nazaré.
Fuga para o Egipto
“Toma contigo o Menino e sua Mãe e foge para o Egipto”
Faz parte das narrações de Mateus a visita dos Magos a Belém e a decisão de não voltar a ver Herodes. Desse episódio resulta a suspeita acrescida de Herodes sobre quem seria aquela criança e a consequente ira assassina, o que obriga a família de Jesus a fugir para o Egipto (Mt 2, 13-15).
José cumpre a sua missão, exerce os direitos de chefe de família. é a ele que o anjo aparece e fala para comunicar o destino. Também a ele caberá conhecer a data do regresso. Não só se cumpre a Escritura, como gosta de sublinhar Mateus, mas é também aqui que Jesus assume plenamente a precariedade da condição humana. Como milhões de emigrantes perseguidos pela política ou obrigados pela fome, também eles tiveram de procurar refúgio ou trabalho e reorganizar a vida.
Nestes primeiros passos da fuga para o Egipto começa a vida difícil e silenciosa da Mãe junto do Filho. A abertura para Deus faz sofrer e não há amor sem sofrimento. Maria, animada pela paixão de Deus, não só procura o que Deus ama, mas também faz esforço para ir ao encontro da sua vontade, passando pela renúncia. O amor crucifica os nossos sonhos de controlar a história. Esta deslocação é realmente uma espada de dor a trespassar o coração de Maria. Era inevitável. Na medida em que Maria desejava ser ouvinte da Palavra, aceitava que ela fosse espada de dois gumes e julgasse as disposições do coração (Heb 4,12-13).
A fantasia fecunda dos evangelhos apócrifos e da Legenda áurea enriqueceram as poucas linhas da narração de Mateus. Os ídolos do Egipto caem. Ladrões e leopardos, monstros, lobos e leões ajoelham-se à passagem do Menino. Palmeiras oferecem sombra e frutos, multiplicam-se árvores com poder curativo. Estas facilidades da imaginação romanceada nos apócrifos não são reais. A dureza do evento é simples. Jesus, Maria e José são refugiados. Sentem-se parte de tanta gente que entra na cadeia de vítimas do poder, obrigados a percorrer desertos, terras estranhas durante séculos.
O apelo a José: “levanta-te e parte” ressoa ao longo da história a tantas famílias. Contra todas as opressões e injustiças se deve levantar a nossa voz em nome de Maria. O exemplo de Maria motiva para dar início a uma solidariedade profunda e ativa.
Repouso no regresso do Egipto
“Do Egipto chamei o meu Filho” (Mt 2,15)
A permanência da família de Jesus no Egipto durou até à morte de Herodes (Mt 2,19ss). Também para os tiranos a morte é inevitável e chega com os seus achaques. Herodes morre atingido por doença incurável. Uma esperança se abre para a família exilada. As cenas de repouso no caminho de ida e volta do Egipto concedem a José espaço para a missão protetora. Aqui, neste vitral, pousa a mão no ombro de Maria e debruça-se com familiar doçura sobre o Menino que põe a sua mão pequenina dentro da mão firme da Mãe. Ao fundo, desenham-se pirâmides, para identificar o lugar, e palmeiras para aludir ao milagre do apócrifo Pseudo Mateus, acolhido pela Legenda áurea. As palmeiras inclinam-se às ordens de Jesus para dar frutos e sombra a Maria e ao Menino.
A indicação de S. Mateus é tão vaga acerca da partida para o Egipto que não sabemos o lugar da estada e o percurso. Diversos lugares disputam, naturalmente, a honra de ter hospedado a Sagrada Família. Nem os apócrifos, que descrevem este momento com as habituais cores de fantasia e aventura, apontam lugares objetivos. A base para as lendas é quase sempre uma árvore, uma fonte ou um templo, relacionados com as histórias mirabolantes dos apócrifos. O Pseudo Mateus e o Evangelho árabe da infância são os mais criativos. Mateus cita certamente Oseias (11,1): “Do Egipto chamei o meu Filho”, mostrando que em Jesus se cumpre plenamente a profecia. Não é só Filho de Deus em sentido lato como o Israel do êxodo, mas em sentido pleno. Deus é débil ao colocar a sua tenda nos campos de refugiados. Escolhe estar entre as mais pobres das criaturas. O libertador da humanidade, como novo Moisés, vem do Egipto.
O apelo do anjo faz com que Jesus, Maria e José regressem à sua terra e se estabelecem na modesta aldeia de Nazaré, na Galileia. S. Mateus introduz, aqui, a frequente aproximação bíblica: “Foi habitar numa cidade chamada Nazaré para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas: será chamado nazareno” (2,23). A citação recorre a uma etimologia por semelhança fonética. Assemelha-se a “Nazareu”, pessoa consagrada com voto de abstenção de álcool e impureza ritual, com cabelos cortados. Evoca-se a consagração total a Deus.
Uma aldeia insignificante torna-se o lugar da vida escondida e quotidiana daquele que é apontado “pelos profetas”. Para Maria, para José e para Jesus inicia-se a sequência monótona dos dias, no ambiente sossegado da província, sem revelações ou epifanias solenes de Deus.
Regresso do Egipto:
família de Nazaré com João Baptista
“O Menino crescia e tornava-se robusto enchendo-se de sabedoria e graça” (Lc. 2,40)
Três filhos sucederam a Herodes: Arquelau, Antipas e Filipe. A Arquelau coube a Samaria, a Judeia e a Idumeia. Mateus (2, 2255) justifica a escolha de Nazaré para morada da família de Jesus com o carácter cruel e vingativo deste governante. Como Nazaré se situava na Galileia era governada por Antipas. Lucas diz simplesmente que Nazaré era a “sua terra”.
No deserto, segundo as Meditações do Pseudo Boaventura, os viajantes Maria, José e o Menino Jesus encontram o pequeno João Baptista que lhes ofereceu frutos silvestres, antes de chegarem a Nazaré. A junção do pequeno João com o Menino Jesus não tem nenhum fundamento bíblico. Pelo contrário, o testemunho do Evangelho de S. João (1,31) mostra o Baptista a confessar, ao ver chegar Jesus para ser batizado nas águas do Jordão: “Eu não o conhecia”. Mas foi um tema que exerceu muita atração sobre os pintores e escultores da infância de Jesus. Muitas obras revelam uma graça comovedora, com variantes de delicadeza, que põem a brincar o Menino João com o Menino Jesus.
Esta procura de humanização desenvolve o que é referido, de modo sintético, nos textos bíblicos, quando afirmam: *voltaram para a Galileia, para a sua cidade de Nazaré. O Menino crescia e tornava-se robusto, enchendo-se de sabedoria e a graça de Deus estava com Ele” (Lc. 2,40).
Nazaré torna-se o sinal da presença escondida de Deus nas pequenas coisas, a palavra divina acolhida nos sinais humildes da vida quotidiana. Mesmo sendo uma vida modesta e pobre, vive-se com fidelidade e temor. Inserida no projeto de Deus, esta atitude é profecia. Como acontece no Cântico dos Cânticos, quem tem o coração enamorado transfigura a planície incolor do deserto quotidiano em jubilosa primavera.
Destes dias e dos trabalhos simples, Jesus retirará o repertório das suas imagens, o material simbólico para descrever o Reino de Deus: cizânia e trigo, fogos e vides, peixes puros e impuros, segundo as regras da alimentação judaica, pássaros e serpentes, dramas e alegrias da vida familiar. Aprende, na ferialidade dos dias, o gosto pela simplicidade espontânea.
A Galileia, para além de ser lugar da infância e da juventude escondida de Jesus, transformar-se-á, no final do Evangelho de Mateus, no lugar da grandiosa aparição pascal de Cristo ressuscitado e glorioso (Mt 28,16-20). Aí a Igreja iniciará a função maternal de ser serva da humanidade, anunciadora das maravilhas de Deus na simplicidade dos dias.
Maria e José encontram Jesus entre os doutores
“Teu pai e eu te procurávamos”
Todos os anos era habitual a família de Jesus deslocar-se a Jerusalém pela Páscoa (Lc 2,41). Desta vez, o Filho atingirá em breve os treze anos, a maioridade religiosa com as obrigações inerentes. Após oito dias de presença festiva, o adolescente de doze anos ficou na cidade, aproveitando a confusão das caravanas de regresso, sem Maria e José saberem. Foi grande a aflição até o encontrarem, ao terceiro dia de separação, entre os Doutores. É esse o momento escolhido para este vitral. Jesus aparece a dirigir-lhes a palavra.
O artista representou três figuras de anciãos a contrastar com a juventude do menino-prodígio. Um dos doutores leva a mão ao queixo em sinal de perplexidade, outro consulta um rolo aberto sobre os joelhos. Jesus não está sentado, como diz o texto, mas já de pé com a direita a apontar o alto, parecendo responder à reprovação de Maria que o interpela pelo seu comportamento: “Filho, porque nos fizeste isto?”. Ele respondeu: “Porque me procuráveis? Não sabíeis que eu devo ocupar-me das coisas do meu Pai?” (Lc 2,48-49).
Eis a primeira palavra de Jesus sobre o Pai, que o gerou desde toda a eternidade. Jesus tem a missão de servir o Pai, de ensinar a sua mensagem de salvação, de dar a conhecer o seu amor misericordioso. Neste episódio como que ensaia a sua pregação, como único e verdadeiro Mestre.
Este episódio desconcertante leva Maria a proceder a uma outra peregrinação: a peregrinação da fé. Este facto desperta em Maria algo novo, prelúdio da separação mais dura. Maria põe-se a caminho do sentido deste comportamento, vive a dificuldade dos discípulos em entender a novidade dos gestos e palavras de Jesus. A solicitude de Maria a procurar o filho perdido é ocasião para perceber melhor a vontade de Deus. As incertezas do futuro misturam-se com a previsão de Simeão e tudo interiormente busca entendimento.
Cristo revela-se já aqui, na altura em que atinge a maioridade ritual, como mestre que crescia em sabedoria idade e graça. Ele veio para denunciar a falsa sapiência instalada na cátedra de Moisés.
Jesus penetra no conhecimento dos segredos de Deus. Revela o seu íntimo mistério e inicia a sua independência da família terrena, a quem, contudo, continuará submisso.
Maria dialoga com Jesus adolescente
“Não sabeis que devo ocupar-me das coisas de meu Pai?” (Lc 2, 49)
Este vitral como que prolonga o episódio anterior. Os diálogos, as conversas demoradas e profundas entre Jesus e Maria, revelam o sentido do plano de Deus. Maria interrogava-se e meditava, entrava no mistério do seu olhar sobre a vida. Misturava a tristeza da separação e sentia-se mãe feliz ao perceber o gozo da presença de Deus. Por isso, Maria aceita romper com os seus hábitos e entregar-se à fé. Maria supera-se a si própria e progride no conhecimento de Jesus. Aos poucos descobre que a fé supõe rutura, renúncia, morte e significa acolhimento, força vital. Acontece deste modo o fim de um automatismo familiar.
Colocar o sangue e os bens no seu lugar, na relação com o absoluto de Deus, vai preparando Maria para o momento da vida pública e, sobretudo, da cruz. O coração de Maria prepara-se para conhecer a vida pascal da fé. Para seguir Cristo é necessário abandonar as ideias feitas e abrir-se à radicalidade do amor.
Este diálogo conduz a uma interiorização das relações entre Mãe e Filho. O Filho vive sem infantilismo, sem regressões e chegam ambos a um amor aberto, oferecido, assumido na liberdade. Maria compreende existencialmente que a atitude de Jesus não conduz a um afastamento, mas a uma diferente e nova proximidade. Pela fé e pela meditação vai entendendo que Jesus tem um projeto muito maior que o projeto de qualquer pai ou mãe para os seus filhos.
Na reflexão que esta representação provoca se situa a verdadeira devoção a Maria, sempre em referência ao projeto de Deus e em relação com Cristo, seu Filho.
O mesmo Jesus, que tão vincadamente se declara autónomo, é o mesmo que em Nazaré é submisso aos seus pais. A sua obediência familiar torna-se exemplar. A partir de tão solene afirmação dos deveres de Jesus para com o Pai inicia uma relação marcada pelo serviço às causas de Deus. Considera sua família a humanidade inteira. Agora será lenta a compreensão desta nova relação, mas o modo como Jesus acolhe, com amor e respeito, os deveres dos seus pais para com Ele, vai facilitar o seu crescimento humano e o crescimento da fé de Maria.
Maria cresce no conhecimento do mistério do Filho, deixa-se conduzir pela luz e caminha na esperança, consciente dos limites da sua missão.
Jesus na família de Nazaré
“Não é este o carpinteiro, o Filho de Maria?” (Mc 6, 3)
A submissão de Jesus a seus pais, na vida familiar de Nazaré, é ilustrada neste vitral pela figura de José com a tradicional serra nas mãos e pela conversa familiar entre Maria e Jesus. A referência ao trabalho de carpinteiro deve incluir, segundo a nomenclatura do tempo, a tarefa de construtor de casas. Era uma profissão que gozava de prestígio. Tratava-se de uma classe de pessoas que sendo simples artesãos, não viviam na pobreza extrema, próxima da miséria. Se o grupo social é sempre dado a quem nasce, pertence já a uma decisão pessoal viver de modo simples e solidário. Porque era pobre, Maria com o seu trabalho (coser, lavar, cozinhar, fiar) colaborou na vida da casa.
Foi neste ambiente que Jesus construiu a sua personalidade humana. Porque uma pessoa faz-se muito no dia a dia familiar, no trabalho sem espetáculo, na pequenez dos gestos carregados de amor e na obscura luta quotidiana. Na simplicidade das atitudes, Jesus acolheu o essencial do que lhe era transmitido, sem valorizar as aparências. O coração autenticamente liberto de Maria e a sua abertura silenciosa ao Mistério davam sentido ao tempo, sem acontecimentos relevantes.
Naqueles anos, Jesus observou as imagens que serviriam a sua pregação: o papel do fermento no fazer do pão, que o pano velho não serve para remendar, o valor da lucerna no candelabro, a angústia pela dracma perdida debaixo dos móveis. Para além da pregação permeada de metáforas, aprendeu a linguagem da ternura e a sabedoria da entrega aos outros.
Jesus devia estar a fazer eco das conversas com sua mãe quando afirma: “Não vos preocupeis com a vossa vida, que comereis; nem pelo vosso corpo, com o que vestireis. Não vale mais a vida do que o alimento e o corpo do que a veste?” E outra palavra de Jesus não será eco dos diálogos com Maria: “não amontoeis tesouros na terra, onde há ferrugem e traça que corroem e ladrões que assaltam e roubam” (Mt 6, 19)?
É em Nazaré que Cristo passa a adolescência e a juventude. Anos modestos, obscuros numa pobre família de artesãos. Não sabemos nada acerca do modo como cresceu em sabedoria e graça. Durante o ministério público, Cristo regressará a Nazaré. Será momento de desilusão. O discurso ou homilia programática na Sinagoga, partindo de Isaías (Lc 4,16 ss), obteve uma reação violenta. Mas S. Lucas não diz nada sobre a emoção de Maria nesta ocasião. Também S. Marcos cita a “mãe de Jesus” (6,4-6) quando, perante a contestação: “Não é este o carpinteiro, o Filho de Maria?”, refere a réplica de Jesus: *um profeta só é desprezado na sua terra, entre os seus parentes e em sua casa. E não pode realizar ali nenhum prodígio.

Morte de São José, na presença de Jesus e Maria
“Agora podes deixar em paz o teu servo” (Lc 2,29)
A representação deste vitral regista a presença de Jesus, que consola José, deitado no seu leito, e de Maria ajoelhada ao lado do seu esposo. Como não havia notícia histórica acerca das circunstâncias da morte de S. José, os Padres da Igreja aceitam várias opiniões. Santo Epifânio pensa que S. José abandona a vida terrena pouco depois de Jesus ter feito doze anos. Outros afirmam que José morreu no tempo de pregação de Jesus. Mais acertada parece ser a opinião que adormeceu no Senhor antes de Cristo começar o ministério público, antes das Bodas de Caná, porque não é mencionada aí a sua presença. Também não é referido quando a família vai buscar Jesus, nem junto à cruz. “Nas Histórias de José, o carpinteiro, que datam do século IV e V, considera-se que José chegou aos 111 anos, com ótima saúde, trabalhando até ao fim. Ao chegar a hora da morte foi advertido por um anjo e foi rezar ao templo. Regressado a Nazaré adoeceu e angustiou-se. Jesus consola-o. Deus envia Miguel e Gabriel que tomam a alma de José e a acompanham cantando… Neste vitral, o episódio é, porém, reduzido ao essencial, sem a fantasia dos apócrifos, a não ser a idade.
Esta cena é ocasião para reconhecer o papel de José na vida de Maria e de Jesus. As meninas casavam-se cedo, entre os doze e os quinze anos. Os rapazes até aos dezoito. Como Maria não percebia o que Deus dela queria, temia unir a sua vida a alguém. Mas conhecer José foi uma paz. Desde os catorze anos, Maria uniu a sua vida à de José, seu esposo.
O facto de ser noiva e comprometida com José equilibrava-a. Sentiu-se amada sem prisões, partilhada sem divisões. As mensagens de Deus foram esclarecendo o sentido de um amor atraído para a grandeza dos planos de Deus.
José deu o seu nome a Jesus (Mt 1,21.25), adotou-o e reconhecendo-o seu, introduziu-o na sociedade na linha davídica. Atua na linha dos justos do Antigo Testamento que tinham aceitado filhos. A figura de José é a de um homem crente nas promessas de Deus, virtuoso e santo.
Com a graça e a força do Espírito resolve o seu conflito interior, a sua angústia, o abatimento e até o desfazer dos seus planos para se deixar converter em esposo e amigo de Maria, protetor da família, disposto a orientar toda a vida para a esperança, porque assim o Esperado de Israel chegou. Conduzido pelos sonhos, como linguagem de Deus para comunicar a sua vontade, José dispõe-se totalmente ao mistério.
Jean Gerson (+1429), da Universidade de Paris, é o primeiro autor a defender que S. José goza da máxima glória, logo a seguir a Maria. Quer a união com Cristo quer a afinidade com Maria sua esposa indicam para S. José a plenitude de gozo na glória eterna. José é considerado patrono da boa morte. Pode obter-nos a perseverança até ao fim, sob o olhar amoroso de Jesus e de Maria.

Maria na vida pública de Jesus
“Felizes os que escutam a Palavra de Deus e a põem em prática (Lc. 11, 28)
Jesus deixa a sua vida de carpinteiro e lança-se no itinerário do Reino pelas estradas do mundo. Sem Jesus, a casa de Nazaré ficava deserta. Tudo no lar recordava a Maria o Filho. Maria seguirá Jesus de longe, pelas notícias e rumores que lhe chegavam, próxima na preocupação materna, com santa liberdade, contente ao ver-se proclamada “feliz porque acreditou”. la sabendo, por exemplo, que Jesus desceu ao Jordão para ser batizado pelo seu primo João. As pessoas seguiam-no e tinha escolhido doze companheiros. Narravam-lhe os seus milagres e chegou, naturalmente, a aproximar-se para, ao longe, ver Jesus e escutar a sua pregação.
Quando Cristo proclamou as bem-aventuranças podemos imaginar que João segredasse a Maria que lhe pareciam o retrato da Mãe. Maria deveria ter contraposto que preferia vê-las como autorretrato de Jesus.
São esporádicas as vezes em que Maria aparece referida no Evangelho, ao longo da vida pública (Mt 12,45-50; Lc.11, 27-28). Jesus aproveita esta rara presença para ensinar, partindo de uma realidade perfeitamente adequada. Os afetos da família são postos ao serviço da mensagem, da missão. A certa altura a família de Jesus quis detê-lo porque estava louco (Mc 3, 21). Jesus é acusado pelos inimigos de estar sujeito a possessão diabólica e aqui entra a intervenção da família. Ao rejeitar Jesus, os detratores contradizem a sua esperança. Não têm discernimento para distinguir entre movimento profético do Espírito e impulso de Satanás. Quando chega a família, em nome da solidariedade do sangue, para pôr Jesus fora do círculo dos ouvintes, Ele afirmou novos laços: Quem fizer a vontade de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe” (Mc 3, 35).
De Mãe, Maria passa a discípula. E, como diz Santo Agostinho, é mais importante para Maria ser discípula de Cristo do que sua Mãe. Há uma relação adulta, de respeito e liberdade de cada um. A lei do sangue não tem palavra definitiva. Sujeita-se à liberdade da fé.
A figura de Maria é referida no episódio narrado por Lucas (11,27-28): “Certa mulher levantou a voz do meio da multidão e disse: ‘felizes as entranhas que te trouxeram e os peitos que te amamentaram!? Ele, porém, respondeu: felizes, antes, os que ouvem a palavra de Deus e a observam” É este o verdadeiro perfil de Maria, a sua autêntica interioridade, traduzida na realização feliz da Palavra de Deus. É na plenitude desta obediente intimidade que Maria é parente e mãe de Jesus.

Bodas de Caná
“Houve um casamento… e a mãe de Jesus estava lá”
No começo da pregação de Jesus, a Mãe e o Filho voltam a encontrar-se por ocasião de umas Bodas. Cana, aldeia situada a seis quilómetros a nordeste de Nazaré, é o lugar do primeiro sinal narrado pelo Evangelho de João. Estes sinais aludem, para além da resposta a uma necessidade material imediata, a um sentido indicador da revelação do mistério de Jesus. A Mãe impulsiona o Filho para antecipar a hora da sua revelação, suplicando-lhe que salve da aflição os noivos, pouco previdentes em preparar vinho suficiente. Maria tem fé no Filho que aplica a si as promessas de Deus. Maria abandona projetos imediatos para seguir o Filho e indicar o caminho da obediência: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (v. 5). Não se impacienta. Com grandeza de coração, requer a partilha do vinho do Reino novo. Jesus, na liberdade do seu projeto de fidelidade às coisas do Pai, atende a intercessão de Maria, atenta e discreta.
Foi o único milagre que Maria observou diretamente. Jesus possuía tanta abundância de vida que multiplicava tudo. Ali só mudou a água em vinho. Transformar a água em vinho é sinal de outra transformação que sucederá mais tarde. Na hora da cruz fez do vinho o seu sangue. Esta cena é um prelúdio das Bodas que Cristo quer selar com o seu sangue. Na hora de Caná começou a morrer porque aí se manifestou e começaram a cercá-lo de incompreensão, manifestou a sua glória, mas só alguns acreditaram. Passa-se aqui de uma conceção paradisíaca dos tempos messiânicos para a designação da hora da cruz como hora da verdadeira glória.
O servo que prepara as seis talhas, na parte inferior do vitral, é testemunha da manifestação, da novidade. Com Maria, os servos de Cristo de todos os tempos prontificam-se a passar da esperança messiânica para a confiança no Filho entregue. Aprendem a recusar um messianismo humanamente triunfal.
Maria é serva e sabe a quem serve. Sabe de quem lhe vem a possibilidade de servir o vinho da alegria e da nova aliança à humanidade sequiosa. A “mulher” perfeita, a nova Eva, Maria, na sua fé límpida e plena, apresenta-nos Cristo na sua missão de salvação, na sua hora, de cruz e ressurreição, fonte de alegria e de liberdade.

Maria abraça Cristo na cruz
“Eis o teu Filho… Eis a tua Mãe” (Jo 19, 25-27)
Agora começa o grande caminho da via da cruz, no qual Maria se mostra Mãe do Redentor. Maria colabora deste modo no acolhi mento da Redenção e ensina os fiéis, os seguidores de Jesus, a abraçar a cruz, recolhendo a graça da Redenção. No vitral vê-se também Madalena, sempre atenta aos pés do Mensageiro da paz. Paz acolhida na sua vida atribulada e inquieta.
Deus não morre, mas o coração de mãe poderia morrer. Imersa na sua condição humana, Maria quer estar próxima na hora da paixão. Podia reservar-se dessa dor. Mas não. Era ali o seu lugar. Ao lado do Filho no caminho do Calvário e junto à cruz. Sente nas suas mãos o sangue que era seu e que agora se derrama por todos. Ouve o último bater do coração que vibrou ao ritmo do seu. A dor de Maria atravessa a sensibilidade e afetividade do seu coração maternal. Cristo entrega-lhe a missão de ser Mãe do novo povo de Deus. representado por um discípulo, que a tradição identificou com João
Maria avançou na obscuridade da fé e repetiu as palavras: “Eis a serva do Senhor”, entregando nas mãos do Pai o desenlace daquele drama. Cristo, ao dar-se ao Pai sem limites, em amor despojado, rompe a finitude e a solidão. Como sinal de entrega total dá a Mãe ao discípulo, símbolo dos crentes, dos filhos da Igreja. É um momento solene que revela o mistério e o significado das pessoas. Dá tudo em comunhão total com o Pai. Mais uma vez, os laços do sangue dão lugar aos laços da fé. Assim se indica o novo tipo de relações na Igreja. Depois da missão realizada junto de Jesus, Maria é a “mulher”, a nova Eva, a mãe dos crentes no seu Filho. Um Filho nunca sai de dentro da mãe. Maria procurou agora o Filho no meio dos discípulos, exercendo a sua missão materna de proteger do mal a nova humanidade.
Maria, ao participar no sacrifício de Cristo, é verdadeiramente nova Eva, junto do novo Adão, início de uma nova humanidade. O coração de Maria continua a vibrar quando há incompreensão humana, como na hora da cruz, sente a injustiça criminosa do seu povo. Sofre pelo povo, atraiçoado pelos seus chefes.
Maria percebe o sentido daquela morte e sente-se solidária com a dor do seu Filho. Meditava como a morte de Jesus é redentora. E aceitação do cálice que o Pai lhe entregou. A carne que tinha dado era agora ocasião de salvação para todos.
Aqui a vemos a abraçar a vontade do Pai, a abraçar a cruz do Filho e disposta a abraçar os discípulos, fortalecidos pelo Espírito Santo nas horas duras.

Descida da cruz
“Maria conservava a lembrança de todos estes factos no seu coração” (Lc 2, 51)
Maria prepara-se para acolher Cristo, descido da cruz por várias personagens: José de Arimateia, Nicodemos, João e Maria Madalena.
Os Evangelhos referem também Maria de Cleofa, uma irmã de Maria e, portanto, tia de Jesus, Maria, mãe de Tiago, a mãe dos filhos de Zebedeu, Salomé, Joana… Era costume permitir aos parentes e amigos seguir os últimos momentos dos crucificados. Mas, como João Evangelista, fixemos o olhar apenas nos rostos principais.
Agora, falta Maria receber no regaço o corpo do seu Filho Jesus, aqueles despojos de quem tinha gerado, aquele rosto desfigurado do Menino que acariciou, aqueles olhos apagados que eram a luz de um mundo novo. Maria treme de ternura, ao ver aquela testa, que tantas vezes beijou, cravada de espinhos; aquelas mãos suaves, que agarraram o seu peito, esfaceladas por cravos; aquele corpo que lavou, tão sujo de sangue e maus-tratos.
Maria, ao acolher no regaço o corpo morto do Filho, sentia o dom da sua coragem de ir até ao fim. Jesus continuaria dentro de Maria como antes de o dar à luz, agora no coração, bem vivo. A força da vida toda de Cristo, aparentemente terminada no drama da cruz, foi tão lúcida e luminosa, tão dada e derramada que a sua morte era para Maria a verdade clara da obediência de Jesus ao Pai.
A Mãe haveria de reter nos ouvidos gritos, insultos, escárnios, que se repetiriam tantas vezes para com os seguidores do seu Jesus. As feridas avivar-se-iam, mas renovava a sua vontade de os seguir e acompanhar até ao sangue que abre à esperança.
Maria está ausente nas cenas do sepulcro, nas últimas homenagens ao cadáver do seu Filho. No sepulcro, Maria via a imagem do seu ventre e sentia a brevidade deste segundo parto do Calvário, o mais duro. Iria senti-lo dentro de si como ao gerá-lo.
Maria e o discípulo deixam o Calvário, depois desta experiência tão carregada de sentido. Meditam e cumprem as palavras escutadas na hora. O discípulo recebe Maria em sua casa”. Não terão apenas uma residência comum, que a tradição popular quis que fosse a Ásia Menor e Maria tivesse morrido em Éfeso. Hoje, parece mais atendível a tradição de Jerusalém, testemunhada pela actual basílica da Assunção, colocada junto de Getsemani. O mais importante desta referência é o discípulo ter acolhido Maria consigo, com os seus”, em comunhão de fé e amor, como o cristão vive em profunda comunhão com a Igreja sua mãe.

Descida do Espírito Santo sobre Maria e os apóstolos
“Unânimes, perseveravam na oração com algumas mulheres, entre as quais Maria” (Act. 1,14)
Os evangelhos não narram o abraço da Mãe ao Filho ressuscitado. Só a fantasia dos apócrifos o faz. No coração de Maria, o Filho sempre está vivo, ressuscitado. Nunca perdeu a esperança. No entanto, o Novo Testamento coloca Maria no Pentecostes para a chegada do Espírito Santo. É o mesmo Espírito que a encheu de graça desde o nascimento, lançou nela a semente do Filho e lhe inspirou as palavras do Magnificat.
Maria falava de Jesus à Igreja, mais pela forma como estava presente do que pela abundância das palavras. Era delicada e prudente, discreta e humilde e via como os apóstolos e discípulos orientavam a Igreja.
Maria que deu à luz a Cabeça da Igreja, está agora presente e atuante quando nasce o Corpo dos seus seguidores. Como informa Lucas, no início dos Atos dos Apóstolos, toda a comunidade crista das origens espera, no Cenáculo, em oração assídua e concorde, o dom do Espírito Santo, à volta de Maria. Não podiam os discípulos ter melhor modelo de perfeita orante.
O texto mais antigo, que fala de Maria no Novo Testamento, data de 54 e é a carta aos Gálatas (4, 4-6). O Verbo recebe a natureza humana de Maria, que é proclamada por Paulo como a Mãe de Deus.
A encarnação é para fazer-nos filhos de Deus e Maria é a mãe dos redimidos pelo Filho. O envio do Filho e o do Espírito Santo são postos em paralelo nesse texto. A iniciativa do envio diz respeito ao Pai, mas Cristo ocupa um lugar central. Graças ao envio do Filho, os crentes tornam-se filhos adotivos e o Espírito, dado com a filiação, permite-lhes gozar desta situação inédita. O Envio do Filho e do Espírito transforma radicalmente a situação dos crentes, de escravos passam a filhos, herdeiros da promessa. O envio do Espírito permite entrar no movimento de renovação e tomar consciência da nova identidade. O Espírito Santo derrama nos corações o amor de Deus (Rom. 5, 5). Assim se exprime a transformação radical que atinge o centro, o coração, lugar da inteligência, da vontade e do afeto. Deus está na origem de toda a obra de salvação.
O envio do Filho, nascido de mulher, é tempo decisivo. O Espírito permite aos cristãos experimentar a sua nova condição. Maria não podia faltar neste processo de renascimento. Depois, desaparece na comunidade, acompanhando-a com ternura, compaixão, solicitude para que sempre se renove pela força do Espírito.

Dormição ou Assunção de Maria, rodeada dos apóstolos
“Somos transfigurados… pela acção do Senhor, que é Espírito” (2 Cor 3,18)
Rodeada dos apóstolos, Maria adormeceu para sempre e nasceu para a vida eterna. Calmamente, apagou-se e entrou na plenitude da presença de Deus, na eternidade. Agora, pode ser mais amplamente, Mãe de todos. A sua vida continua no coração de quem a ama. Desde a paixão e do desaparecimento físico de Cristo, Maria sentia-se atraída pelo céu, pela presença gloriosa do Filho. Foi pela graça do Espírito que aguentou o tempo.
Para chegar à formulação da verdade da Assunção de Maria tem peso a religiosidade popular que une a Mãe ao Filho e sente conveniência na glorificação de Maria na totalidade do seu ser. O Pai queria a sua filha dileta junto de si. O Espírito Santo queria a sua esposa divina junto a si. E o Filho? Certamente! Porque não adiantar para Maria, a Filha, a Mãe e a Esposa, o que nos será dado no fim do tempo? Maria marca o caminho, assinala a meta e, com carinho materno, convida-nos a seguir o seu percurso.
O vínculo pessoal com Jesus Cristo não a livra da morte, da lei da natureza, mas, porque imaculada, não podia sofrer as consequências do pecado. O Espírito Santo conduz o Povo de Deus a descobrir na vida de Maria as riquezas da Aliança e a exprimir a fidelidade a essa Aliança em Cristo. Ao definir, em 1950, a dogma da Assunção de Maria, Pio XII determina que essa verdade, sentida pelo povo cristão, estava em sintonia com a Aliança de Cristo, com a Igreja.
Quem renunciou a todo o domínio, quem é pobre na oferenda de si ao Pai, possui a terra (Mt 5,4). Assim Maria, após aceitar ser marcada pela cruz, que mata a carne da sua carne, é pessoalmente vivificada pelo poder da Ressurreição. A Dormição e Assunção de Maria revelam uma certa maneira de encarar a vida. Maria permitiu, em todos os limites do seu ser, o advento de Deus. Foi transformada em imagem resplandecente de Deus (2 Cor 3,18). Maria é moldada pelo Espírito que conduziu o Filho. A atividade do Espírito vai até ao fim naquele que crê.
Em Maria, acolhida por Deus, a lareia contempla, em esperança, o fruto da força divina. A humanidade toda começa a ser renovada, ressuscitada, recapitulada (E 1,10) Com Maria a ressurreição começa a estender-se à humanidade. Não fica, por isso, isolada, mas mais presente no mundo. O lugar único que Maria ocupa na história da Salvação permanece até aos nossos dias. O dom de ser elevada é dom do Ressuscitado, diz respeito a toda a Igreja enquanto Corpo de Cristo.

Coroação de Maria
“Doravante todas as gerações me chamarão bem aventurada” (Lc 1,48)
A Assunção de Maria desenvolve-se na Coroação, como modo visível de celebrar a fidelidade ao dom recebido pela entrega plena. Neste vitral, Maria abre os braços em acolhimento e gratidão para receber a coroa, rodeada de raios da luz do Espírito. Seguram a coroa duas mãos que representam o Pai e o Filho. Esta coroação aparece como obra da Trindade.
A partir da sua simplicidade e pobreza, Maria profetizou que todas as gerações a proclamarão bem-aventurada. Como se passa daí a coroação? A Bíblia apresenta Cristo como Rei, quer nos Salmos (71, 109), quer em Daniel (7, 14) e Isaías (9, 6). Também S. Lucas põe na boca do anjo: “Ele será grande, será chamado Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de David, seu pai, ele reinará na casa de Jacob para sempre, e o seu reinado não terá fim” (Lc 1, 32-33). Da realeza do Filho flui para a Mãe um lugar singular. A imagem é acolhida no Oriente e já está assumida no século VI no Ocidente. Antes de se optar por representar a coroação de Maria (desde o século XII, no gótico), já lhe são conferidos, pela arte, atributos reais.
Desde o século VI ao VIII veste hábito de imperatriz bizantina, púrpura ornada de pedras preciosas, com diadema pleno de pérolas (Madonna della Clemenza, Santa Maria do Trastevere, século VI). Receberá a coroa, o globo imperial, o ceptro (Giovanni Pisano, capella Arena de Pádua, 1305). Os anjos assistem ao trono e os santos aclamam.
A tradição cristã vê a imagem de Maria em glória nos capítulos 11 e 12 do Apocalipse. Aí se referem as doze estrelas a coroar a sua cabeça. No contexto de vitória sobre o mal, Maria reveste-se da glória de Deus que vence as forças da maldade. Maria cumpre a sua missão na Igreja sendo companheira nos atuais combates e atestando a vitória real de Deus. Com amor de rainha do céu, Maria une-se a todos os que instauram na sociedade os valores do Reino de Deus.
Cada cristão, pelo testemunho recebido, pode interrogar-se e construir a sua própria vida. Maria é Mãe de todo o cristão que nasce para a fé e se dispõe para a entrega à dor e à alegria de um amor criador.