Ano Pastoral 2022-2023

Acolher o convite à conversão
Tema para reflexão Março 2023

A conversão, como adesão de toda uma vida a Cristo, pode dar-se em momentos e de modos diversos. Aliás, a conversão não constitui um momento isolado na existência humana, mas é como uma dinâmica sempre emergente que suporta todo o edifício da fé pessoal. É nos momentos mais importantes da vida, nos momentos de transição em que temos de fazer escolhas, nas situações em que está em jogo todo o projeto global de uma vida, que o homem é desafiado à conversão, aprofundando a sua adesão livre, consciente e amorosa ao próprio Deus.

É tarefa da Catequese favorecer e despertar o encontro pessoal com Cristo e, portanto, levar à conversão da vida. A Igreja, ao anunciar a Boa Nova da Revelação às crianças, jovens e adultos, convida-os à conversão e à vivência da Fé, dom destinado a crescer no coração dos crentes e que precisa de ser constantemente alimentado, sob pena de perecer; a Fé, fortalecida pela Esperança e pelo Amor, conduzir-nos-á, pela escuta da Palavra, a uma conversão sempre renovada que concretiza a nossa resposta a Deus.

O caminho de conversão coloca-nos numa busca constante, a fim de realizar em nós os ensinamentos de Cristo, pela maneira de olhar e lidar com os outros à luz da misericórdia, da justiça e da paz. A conversão faz-nos reconhecer Deus como autor da vida e aponta à nossa participação ativa na criação, como corresponsáveis pela sorte dos outros homens, nossos irmãos e pela natureza, a ‘casa’ que todos partilhamos. Por isso, precisamos de colocar no centro das nossas sociedades, com grande evidência, a noção do bem comum. O “salve-se quem puder” ou o “todos contra todos” conduzem-nos à fragmentação social e não são estratégias de futuro; nem podemos ignorar que as decisões de hoje terão um reflexo nas gerações vindouras. Como comunidade cristã, compete-nos servir o bem comum que, no fundo, é servir a pessoa humana e promover a cultura da fraternidade.

A Quaresma, o itinerário de 40 dias que conduz à Páscoa, e que se prolonga por este mês de março, é, na Igreja, uma excelente oportunidade que nos é oferecida para questionar e refletir sobre as nossas atitudes e procedimentos, combatendo as que podem ser fator de afastamento ou pouca coerência com o compromisso de vida assumido no batismo.

Para ajudar no processo de revisão e conversão de vida, existem ferramentas que lhe dão expressão e consistência: são o jejum, a oração e a esmola e o Papa Francisco fala-nos delas numa das suas mensagens para o período que vivemos: “Quem jejua faz-se pobre com os pobres e «acumula» a riqueza do amor recebido e partilhado” diz o Papa. Na sua mensagem (Quaresma 2019), Francisco lembra que a esmola é “a atenção e os gestos de amor pelo homem ferido” e a oração é o “diálogo filial com Pai”. Estas três dimensões, “permitem-nos encarnar uma fé sincera, uma esperança viva e uma caridade operosa”. O Papa acrescentou que a Quaresma “é tempo de graça para libertar o coração das nulidades” e “de cura de dependências”. “Carregados com pesos embaraçantes, nunca iremos para diante. Precisamos de nos libertar dos tentáculos do consumismo e dos laços do egoísmo, de querer sempre mais, de não nos contentarmos jamais, do coração fechado às necessidades do pobre”.

De facto, a Quaresma é o tempo favorável para nos renovarmos, encontrando Cristo vivo na sua Palavra, nos Sacramentos e no próximo. O Senhor indica-nos o caminho a seguir guiados pelo Espírito Santo na realização dum verdadeiro caminho de conversão, para redescobrirmos o dom da Palavra de Deus, sermos purificados do pecado que nos cega e servirmos Cristo presente nos irmãos necessitados.

“O caminho ascético quaresmal e, de modo semelhante, o sinodal, têm como meta uma transfiguração, pessoal e eclesial. Uma transformação que, em ambos os casos, encontra o seu modelo na de Jesus e se realiza pela graça do seu mistério pascal. Para que, neste ano, se possa realizar em nós tal transfiguração, quero propor duas «veredas» que é necessário percorrer para subir juntamente com Jesus e chegar com Ele à meta. Assim a primeira indicação é muito clara: escutar Jesus. A Quaresma é tempo de graça na medida em que nos pusermos à escuta d’Ele, que nos fala. E como nos fala Ele? Antes de mais nada na Palavra de Deus, que a Igreja nos oferece na Liturgia. (…) Mas quero acrescentar ainda outro aspeto, muito importante no processo sinodal: a escuta de Cristo passa também através da escuta dos irmãos e irmãs na Igreja. (…) a segunda indicação para esta Quaresma: não se refugiar numa religiosidade feita de acontecimentos extraordinários, de sugestivas experiências, levados pelo medo de encarar a realidade com as suas fadigas diárias, as suas durezas e contradições (…) Desçamos à planície e que a graça experimentada nos sustente para sermos artesãos de sinodalidade na vida ordinária das nossas comunidades.” Papa Francisco, (Mensagem para a Quaresma 2023)

A humanidade sofre, hoje, num violento esforço de libertação política, cultural e económica: os povos lutam para se libertarem da guerra, da fome, das ditaduras; quantos vivem em situação de precaridade e sofrimento; quantos, privados da própria dignidade, lutam pela capacidade de se resgatarem da pobreza e solidão… O Papa Bento XVI alertava-nos para este facto: “O verdadeiro problema neste momento da nossa história é que Deus possa desaparecer do horizonte dos homens e que, com o apagar-se da luz vinda de Deus, a humanidade seja surpreendida pela falta de orientação, cujos efeitos destrutivos se manifestam cada vez mais”. Convém termos consciência que, lá onde alguém está a lutar por um mundo mais justo e mais fraterno, aí está Deus – esse Deus que vive com paixão o sofrimento dos explorados e que não fica de braços cruzados diante das injustiças.

Diante de tantas situações dramáticas que atingem o ser humano, somos convidados a uma maior vigilância sobre nós mesmos. Recordar a nossa fragilidade deve levar-nos a voltar o nosso ser para Aquele que pode dar verdadeiro sentido à nossa vida. Não se trata de procurar culpabilidades, mas de abrir o nosso coração à vinda do Senhor. Não nos devemos desencorajar diante das nossas esterilidades pois Deus é infinitamente paciente connosco. Ele sabe da nossa fragilidade, conhece os nossos pecados, mas nunca deixa de ter confiança em nós, até ao fim do nosso caminho. Ele não quer punir-nos, quer fazer-nos viver livres da escravidão do egoísmo e do pecado, para que em nós se manifeste a vida em plenitude.

O tempo da Quaresma é feito para ter esperança, para voltar a dirigir o nosso olhar para a paciência de Deus, que continua a cuidar da sua Criação, não obstante nós a maltratarmos com frequência (Laudato si’3233.4344). Estejamos mais atentos a “dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem, estimulam, em vez de palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam” (Fratelli Tutti, 223). Às vezes, para dar esperança, basta ser “uma pessoa amável, que deixa de lado as suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta indiferença” (FT, 224).

Aproveitemos, também, este tempo de preparação para a Jornada Mundial da Juventude (JMJ Lisboa 2023), que trará o Papa Francisco ao nosso País, fazendo dele um tempo favorável a uma mudança de vida, pessoal e eclesial,  pedindo a Deus que nos dê a graça da conversão, que nos toque profundamente o coração e nos faça sentir atraídos pelo Seu Amor; assim,  seguindo a exortação de S. Paulo “Reconciliai-vos com Deus” (2 Cor 5,20), abraçamos Jesus Crucificado, verdadeiro sinal do abraço de Deus a toda a humanidade. É que “só entrando no seu abraço é que compreendemos que Deus Se deixou levar até àquele ponto, até ao paradoxo da cruz, precisamente para abraçar tudo em nós, incluindo quanto havia de mais distante d’Ele: a nossa morte, o nosso sofrimento, as nossas pobrezas, as nossas fragilidades e as nossas misérias. Ele abraçou tudo isto (…), entrou nos buracos negros do ódio, nos buracos negros do abandono para iluminar cada vida e abraçar toda a realidade” (Papa Francisco, Homilia, 20-11-2022).

Gilda Príncipe

Acolher a diferença
Tema para reflexão Janeiro / Fevereiro 2023

Uma frase tão pequena e simples. Mas afinal o que é a diferença? Quem é que temos de acolher? E como é que se acolhe?

A diferença parece ser fácil de nomear – o sem-abrigo é diferente de mim, o doente é diferente de mim, a pessoa com deficiência é diferente de mim, o estrangeiro é diferente de mim, o refugiado é diferente de mim. Nos dias de hoje, é quase com demasiada facilidade que nos demarcamos desses e de outros grupos “diferentes”. É fácil inclusivamente que essa constatação nos agrade, quase sem querer. Afinal, na “diferença” incluem-se grupos cujas características se associam a diversas dificuldades na vida em geral; comumente existe até uma sensação de que esses grupos “diferentes” merecem a nossa pena, e, quem sabe, um pensamento algo vão de que deviam ser ajudados, de que precisam disso.

Não é, contudo, assim tão simples. Nunca esquecendo que cada um de nós é valiosamente diferente e especial na sua individualidade, e que fazemos parte de uma grande família mundial que engloba diversos contextos culturais que muito nos enriquecem com a partilha mútua de valores, parecemos perder de vista uma noção muito simples – a tal “diferença” que tão rapidamente teimamos em ver, não é fundamentalmente importante aos olhos de Deus. Ele é Pai Nosso – dos doentes, da pessoa com deficiência, dos sem-abrigo, dos refugiados, dos estrangeiros, meu e vosso. Foi a todos que ele chamou de “Filhos” e é em cada um dos nossos rostos – os nossos e os “diferentes” – que Ele se mostra todos os dias. E sobretudo, é através do nosso irmão “diferente” que Ele procura o nosso acolhimento.

E então como acolher? Como acolher a diferença? A resposta mais simples seria dizer “de braços abertos”. Não há nada a perder, e muito a ganhar, em acolher o próximo, seja ele diferente de mim ou não. Afinal, é Deus que estamos a acolher, conforme está escrito no Evangelho – “Pois eu tive fome, e vocês deram-me de comer, tive sede, e vocês deram-me de beber, fui estrangeiro, e vocês acolheram-me”, Mt 25:35.

Mas é preciso concretizar o que é (e não é) acolher. O acolhimento tem muitas formas. Nem chega a ser preciso muitas vezes criar um momento em particular para acolher. Conforme nos conta o Papa Francisco na sua carta encíclica Fratelli Tutti: “Sentar-se a escutar o outro, característico de um encontro humano, é um paradigma de atitude recetiva, de quem (…) acolhe o outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo.” Isto é extremamente importante. É preciso lembrarmo-nos que acolher não é necessariamente “ajudar”, partindo do pressuposto que o “diferente” precisa da minha ajuda porque tem limitações ou dificuldades. Nem sempre acolher é dar de comer, ou de vestir. Às vezes acolher é fazer o próximo sentir-se incluído nas dinâmicas da vida normal do dia-a-dia e ajudá-lo a encontrar o seu lugar na comunidade. Não com paternalismo, mas com a amizade e humildade de quem partilha um mesmo lugar e uma mesma importância. A pessoa com deficiência ou o refugiado que experimenta partilhar connosco a Eucaristia não precisa da nossa ajuda muitas vezes – mas precisa do nosso sorriso quando se senta ao nosso lado porque nos sentimos alegres por partilharmos a Eucaristia com esse nosso irmão, e precisa da nossa compreensão se em algum momento não conseguir acompanhar a celebração. Os doentes que visitamos não precisam da nossa ajuda nos seus cuidados médicos, mas alegram-se em nos receber nas suas casas para uma conversa, de igual para igual, e para os fazermos sentir que, mesmo com possível limitação no acesso, nós lhes levamos a Igreja e os seus valores até si.

Outras vezes, a diferença bate à nossa porta quase sem darmos conta e a nós cabe-nos perceber esse anúncio como uma oportunidade de acolhimento, não só da diferença, mas de Cristo – “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir a porta, entrarei e cearei com ele, e ele comigo.”, Apocalipse 3:20. O sem abrigo que frequenta, por exemplo, a Porta Solidária, não quer de nós apenas a comida que entregamos, como quer sentir que quem a entrega o tem em consideração, que se lembra do seu rosto e lhe pergunta como está, que não está “abaixo” de quem ajuda, mas ao seu lado, em igualdade, como irmão.

Em todas estas pequenas ações acolhemos a diferença. E, por conseguinte, acolhemos Deus na nossa vida – “Em verdade vos digo, que todas as vezes que fizestes isso a um dos menores dos meus irmãos, foi a mim que o fizestes”, Mt 25:40. Indo ainda mais além, nestas atitudes experimentamos também nós a alegria de ser acolhido – para acolher, temos sempre de nos deixar ser acolhidos pelo outro; acolher é um verbo de dois sentidos, uma porta aberta que permite não só que “a diferença” entre na nossa vida, mas que nós também entremos na vida do “diferente”.

Se calhar o grande caminho desta reflexão é, não tanto apenas recordar-nos da diferença que precisamos de acolher e de como o podemos fazer, mas assinalar que acolher deve ser algo que ocorre muito naturalmente na nossa vida, sem esforço e sem artificialidade, uma simples prática de Amor – “Pela sua própria dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um sentido pleno de mútua pertença.” – carta encíclica Fratelli Tutti. E depois disto, ir mais além, seguir o caminho de Cristo, olhar para a diferença e ser capaz de ver para além dela, até deixar de a ver e, humildemente, partilhar o nosso caminho com os “irmãos diferentes”, tão como nós.

“Não se esqueçam da hospitalidade; foi praticando-a que, sem o saber, alguns acolheram anjos.” – Hebreus 13:2. Que nunca nos esqueçamos de acolher.

Catarina Elias

Abraça o presente. Juntos por um caminho novo.

Reflexão para o Tempo do Advento:
Acolher e deixar-se acolher por Jesus

Aproxima-se o a celebração anual do nascimento do Senhor, do Criador do Universo. Por esse nascimento, Ele carregou no Seu coração toda a história – a nossa história também, pois –, fazendo-Se o eixo da unidade humana. Ele irá viver e, como culminar de todo o amor por Si vivido nesse viver, morrer e ressuscitar. Mas não sem antes nos entregar a Si mesmo na Eucaristia. Mas se Ele é aquele eixo que reúne a humanidade, a Eucaristia não é sobre apropriar-se de Jesus. É, isso sim, recebê-lo para, depois, desprendermo-nos d’Ele, para, por nós, estarmos abertos a essa mesma humanidade. E o que ocorre na Eucaristia, síntese da vida humana, é modelo para o que precisa de ocorrer em todo o restante da nossa vida cristã. Aqui está, nestas palavras e talvez escondido, tudo o que é dito no título deste texto. Mas desdobremos um pouco essas palavras.

Não partamos desses eventos cristãos tão salientes na nossa vida de batizados. Partamos da nossa vida diária. Os que vivem connosco, os que se cruzam connosco e aqueles a quem poderíamos ir procurar, vivem de nós? Vivem, também, mas não só, dos nossos salários, das nossas orações, da nossa presença, da nossa compaixão calorosa? Que valor possuem, aos nossos olhos e à nossa preocupação, a sua vida? A sua saúde? A sua salvação? Eis, nesses nossos irmãos, o nosso campo de ação; a nossa porção de Reino que já nos foi confiada e que é dissipada se não for cuidada. Acolher a Jesus, começa por aqui, pois sem isto não há disposição para O acolhermos de outra forma. Sim, podemos recebê-Lo no Menino do Presépio, que vamos fazer neste Advento que está a começar. Sim, podemos recebê-lo na Eucaristia e na Reconciliação, essas belezas com que podemos sempre contar. Mas, sem cuidarmos daquele pedacinho do jardim do Reino, que é o coração dos demais, Ele ficará inerte em nós. Ficará aprisionado em nós, sem que despontem, para benefício de quem quer que seja, os Seus, sempre fecundos em si, dons. Tornar-nos-á em realidades individuais em vez de alimentarmos a nossa dimensão de pessoas, dado que as primeiras são privativas e a segunda criativa.

Mas observemos, agora, outra coisa. Jesus, nos Evangelhos, chamou muita gente para O seguirem. As que conhecemos e as inúmeras outras que nos são desconhecidas. Mas muitas mais vezes, Jesus pediu para ser acolhido, num gesto que demonstra o valor e o crédito que coloca em cada um de nós. Sem O acolhermos, sem Lhe darmos um espacinho no nosso Coração, como O poderemos amar? Só se ama àqueles a quem hospedamos, pelo menos parcialmente, na nossa vida. Àqueles a quem também dizemos, “tu és o meu tesouro escondido no campo”; tu és “a minha pérola de grande valor”. Mas é naquele campo de ação que já vamos podendo acolher a Jesus e preparando-nos para O acolher no Natal e nos sacramentos (e vice-versa). E, como sabemos, acolher alguém nas nossas vidas – que o diga quem ainda se lembra do que foi, para si, ser mãe e pai – é muito mais do que acolher uma presença que nos agrada. É deixar que a nossa vida fique alterada, quiçá para sempre. Mas o nível de transtorno que admitimos na nossa vida no acolhimento de alguém é um reflexo do prazer que temos em o acolher. Por maioria de razão, acolher Jesus significa correr o risco – a certeza? – de uma convulsão, por o nosso egoísmo o recusar dado que não é Que, gostaríamos que fosse, mas Quem é de verdade. A saber: a chave para um Céu, no qual não entramos, mas nos transformamos à medida que nos configuramos com Jesus.

De notar que sermos acolhidos por Jesus não é, de modo algum, mais tranquilo. De modo algum. Não basta conhecê-Lo, servi-Lo, acolhê-Lo. É fundamental sermos hóspedes do Seu amor. É capital deixarmos ser acolhidos por Ele. Somente assim estaremos firmes no Senhor, vivendo em Igreja, não por formalidade ou submissão, mas por uma demissão de nós que nos prepara para uma vida de missão. Para isso, devemos colocar no cabide o ressentimento e o desprezo para com os demais, que, na maior parte das vezes, são uma mera manta para o nosso orgulho. Enraizados no Seu amor, não voltámos para trás, nem andamos ao sabor da corrente do desamor que brota do nosso egoísmo, individual e coletivo. Antes oramos por quem vai nessa correnteza e crescemos no amor, na fé, na esperança. E isto, com um toque de alegria e formosura que nos transforma, no Espírito Santo, em círios a arderem incessantemente nos nossos altares, adoráveis figuras do Cristo imolado, mas erguido. O Altar do mundo; o altar da vida; o altar da igreja. Todos os que nos remetem, quer para a solidão original repleta de companhia, quer para uma comunhão em ato com Deus-Amor que constrói, a cada momento, a história do homem e da Criação cristificada.

Nada acerca desta virtuosa circularidade de acolhimentos pode ser diferente de uma relação coração-a-coração. Assim, mesmo que não consigamos que tal circularidade seja prolongada, será sempre profunda. E sê-lo-á, pois estaremos acima da distinção entre “justos” e “injustos”; entre “bons” e “maus”. Estaremos, pois, na esfera da generosidade caraterística do amor divino. Dura tarefa, duro encargo, este o de sermos seres humanos dando-nos aos demais sem distinções; o de dizermos “sim” ao Deus Altíssimo que Se faz Baixíssimo. E faz-Se assim, seja no menino indefeso do Natal: seja na Cruz dos maiores criminosos; seja na Eucaristia que recebemos sem pensar no tão grande dom que é; seja em cada pessoa que, pelo seu desamor, O desfigura. Eu, em primeiro e supremo, lugar. Eis o cântico do amor do acolher-para-se-deixar-ser-acolhido, pois traduz um amor que é um esforço de parto, no qual, se não se estiver anestesiado, a alegria é um cântico de sofrimento. Um que se prolonga nas águas e óleos do batismo, tornando-nos voluntários do amor maior, mais alegre, mais belo. Numa palavra (que são três): no mais verdadeiro.

Alexandre Freire Duarte (docente da Faculdade de Teologia da UCP Porto)

Tema de reflexão – Dezembro 2022

Aproxima-se o a celebração anual do nascimento do Senhor, do Criador do Universo. Por esse nascimento, Ele carregou no Seu coração toda a história – a nossa história também, pois –, fazendo-Se o eixo da unidade humana. Ele irá viver e, como culminar de todo o amor por Si vivido nesse viver, morrer e ressuscitar. Mas não sem antes nos entregar a Si mesmo na Eucaristia. Mas se Ele é aquele eixo que reúne a humanidade, a Eucaristia não é sobre apropriar-se de Jesus. É, isso sim, recebê-lo para, depois, desprendermo-nos d’Ele, para, por nós, estarmos abertos a essa mesma humanidade. E o que ocorre na Eucaristia, síntese da vida humana, é modelo para o que precisa de ocorrer em todo o restante da nossa vida cristã. Aqui está, nestas palavras e talvez escondido, tudo o que é dito no título deste texto. Mas desdobremos um pouco essas palavras.

Não partamos desses eventos cristãos tão salientes na nossa vida de batizados. Partamos da nossa vida diária. Os que vivem connosco, os que se cruzam connosco e aqueles a quem poderíamos ir procurar, vivem de nós? Vivem, também, mas não só, dos nossos salários, das nossas orações, da nossa presença, da nossa compaixão calorosa? Que valor possuem, aos nossos olhos e à nossa preocupação, a sua vida? A sua saúde? A sua salvação? Eis, nesses nossos irmãos, o nosso campo de ação; a nossa porção de Reino que já nos foi confiada e que é dissipada se não for cuidada. Acolher a Jesus, começa por aqui, pois sem isto não há disposição para O acolhermos de outra forma. Sim, podemos recebê-Lo no Menino do Presépio, que vamos fazer neste Advento que está a começar. Sim, podemos recebê-lo na Eucaristia e na Reconciliação, essas belezas com que podemos sempre contar. Mas, sem cuidarmos daquele pedacinho do jardim do Reino, que é o coração dos demais, Ele ficará inerte em nós. Ficará aprisionado em nós, sem que despontem, para benefício de quem quer que seja, os Seus, sempre fecundos em si, dons. Tornar-nos-á em realidades individuais em vez de alimentarmos a nossa dimensão de pessoas, dado que as primeiras são privativas e a segunda criativa.

Mas observemos, agora, outra coisa. Jesus, nos Evangelhos, chamou muita gente para O seguirem. As que conhecemos e as inúmeras outras que nos são desconhecidas. Mas muitas mais vezes, Jesus pediu para ser acolhido, num gesto que demonstra o valor e o crédito que coloca em cada um de nós. Sem O acolhermos, sem Lhe darmos um espacinho no nosso Coração, como O poderemos amar? Só se ama àqueles a quem hospedamos, pelo menos parcialmente, na nossa vida. Àqueles a quem também dizemos, “tu és o meu tesouro escondido no campo”; tu és “a minha pérola de grande valor”. Mas é naquele campo de ação que já vamos podendo acolher a Jesus e preparando-nos para O acolher no Natal e nos sacramentos (e vice-versa). E, como sabemos, acolher alguém nas nossas vidas – que o diga quem ainda se lembra do que foi, para si, ser mãe e pai – é muito mais do que acolher uma presença que nos agrada. É deixar que a nossa vida fique alterada, quiçá para sempre. Mas o nível de transtorno que admitimos na nossa vida no acolhimento de alguém é um reflexo do prazer que temos em o acolher. Por maioria de razão, acolher Jesus significa correr o risco – a certeza? – de uma convulsão, por o nosso egoísmo o recusar dado que não é Que, gostaríamos que fosse, mas Quem é de verdade. A saber: a chave para um Céu, no qual não entramos, mas nos transformamos à medida que nos configuramos com Jesus.

De notar que sermos acolhidos por Jesus não é, de modo algum, mais tranquilo. De modo algum. Não basta conhecê-Lo, servi-Lo, acolhê-Lo. É fundamental sermos hóspedes do Seu amor. É capital deixarmos ser acolhidos por Ele. Somente assim estaremos firmes no Senhor, vivendo em Igreja, não por formalidade ou submissão, mas por uma demissão de nós que nos prepara para uma vida de missão. Para isso, devemos colocar no cabide o ressentimento e o desprezo para com os demais, que, na maior parte das vezes, são uma mera manta para o nosso orgulho. Enraizados no Seu amor, não voltámos para trás, nem andamos ao sabor da corrente do desamor que brota do nosso egoísmo, individual e coletivo. Antes oramos por quem vai nessa correnteza e crescemos no amor, na fé, na esperança. E isto, com um toque de alegria e formosura que nos transforma, no Espírito Santo, em círios a arderem incessantemente nos nossos altares, adoráveis figuras do Cristo imolado, mas erguido. O Altar do mundo; o altar da vida; o altar da igreja. Todos os que nos remetem, quer para a solidão original repleta de companhia, quer para uma comunhão em ato com Deus-Amor que constrói, a cada momento, a história do homem e da Criação cristificada.

Nada acerca desta virtuosa circularidade de acolhimentos pode ser diferente de uma relação coração-a-coração. Assim, mesmo que não consigamos que tal circularidade seja prolongada, será sempre profunda. E sê-lo-á, pois estaremos acima da distinção entre “justos” e “injustos”; entre “bons” e “maus”. Estaremos, pois, na esfera da generosidade caraterística do amor divino. Dura tarefa, duro encargo, este o de sermos seres humanos dando-nos aos demais sem distinções; o de dizermos “sim” ao Deus Altíssimo que Se faz Baixíssimo. E faz-Se assim, seja no menino indefeso do Natal: seja na Cruz dos maiores criminosos; seja na Eucaristia que recebemos sem pensar no tão grande dom que é; seja em cada pessoa que, pelo seu desamor, O desfigura. Eu, em primeiro e supremo, lugar. Eis o cântico do amor do acolher-para-se-deixar-ser-acolhido, pois traduz um amor que é um esforço de parto, no qual, se não se estiver anestesiado, a alegria é um cântico de sofrimento. Um que se prolonga nas águas e óleos do batismo, tornando-nos voluntários do amor maior, mais alegre, mais belo. Numa palavra (que são três): no mais verdadeiro.

Alexandre Freire Duarte (docente da Faculdade de Teologia da UCP Porto)

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